Na fronteira intercultural brasileiro – boliviana, às margens do rio Abunã, do outro lado do rio está o Município de Santos Mercado, Departamento de Pando – Bolívia, e do lado de cá do rio, está a Região da Ponta do Abunã, Município de Porto Velho, Estado de Rondônia – Brasil.
No Seringal Cotovelo, Santos Mercado, na beira do Abunã, o menino da floresta exibe com entusiasmo uma viscosa Curimatã que acabara de pescar. Nada mal para quem estava acostumado a pescar apenas girigóia.
Com a sua curica de estimação adornando o seu ombro, ele embarca numa pequena Ubá que ele próprio construiu à base de machado e feita de uma árvore caída que encontrara próxima ao seu tapiri.
Navegando no deslumbramento do remanso do rio Abunã, o menino da floresta adentra auspicioso no igarapé Araçari e vai observar se havia algum peixe dentro da Cacuri, uma espécie de armadilha para pegar peixe que ele sempre fizera. Realmente era o seu dia de sorte e uma linda Matrinxã estava a lhe esperar.
Depois de uma tarde radiante o garoto decide retornar ao tapiri, visto que a sua Ubá estava bem próxima da fronteira brasileira. Mas de repente, ele escuta um ronco muito estranho que jamais ouvira. Resolveu aproximar-se cada vez mais do Brasil, desceu da Ubá e ficou amoitado, enquanto o ronco foi ficando cada vez mais forte aos seus ouvidos.
O menino da floresta estava escondido entre três Jarinas, ele afastou as palmas das palmeiras e se assustou, achando que era uma visagem. Ele avistara um homem abufelado num bicho encarnado raivoso que segundo ele, possuía uma língua de ferro que furava a seringueira, varando-a de um lado para o outro, matando-a e que depois de morta ela caía derramando seu leite e provocando um grande estrondo no chão.
O menino correu desembestado, pulou dentro da Ubá e neste seu desembalo derrubou a cuia de coité que estava com a sua farofa de Cutiara para comer no seu retorno para casa. Chegou ao seu tapiri distiorado e encafifado com o que acabara de ver. Impeliu a sua Ubá descabreado e entregou à sua mãe a Curimatã e a Matrinxã que havia pescado.
Ligeiramente o seu pai percebeu que havia acontecido algo estranho, pela forma diferente como o filho havia chegado em casa. Perguntou ao filho se aconteceu algo com ele, ainda assustado, ele contou ao pai o que avistara. O pai sorriu e resolveu contar ao filho que aquele bicho encarnado da língua de ferro era na verdade um motosserra, esclarecendo ao mesmo que era uma espécie de máquina e tirando todas as suas dúvidas.
Mas apenas as explicações do pai não foram suficientes para matar a curiosidade instigante e a inteligência aguçada do menino da floresta. Ele dormiu pouco e passou a maior parte da noite escutando o canto assombroso da Urutau.
No outro dia pela manhã, ele apoderou-se de um saco de encauchado e colocou dentro dele o seu pequeno e afiado machadinho, em seguida segurou no seu inseparável bisaco e colocou uma faca de seringa, uma marreta de madeira, uma raspadeira, um martelo e outros utensílios dentro desta sua boçoroca. Entrou na Ubá e partiu mais uma vez com o objetivo de ver novamente o bicho da língua de ferro ou o motosserra como falara o pai.
Desta feita ele não levou farofa de Cutiara, levou duas cuias: uma com farinha d’água, misturada com suco de Bacaba e açúcar gramixó, e outra com as suas duas frutas mais preferidas, camu-camu e taperebá.
Mas adiante ele atracou a sua Ubá numa ribanceira e subiu num velho Mutá onde o seu pai costumeiramente subia para fazer a sangria e extrair o látex da seringueira. Ele escolheu ficar em cima do Mutá porque de lá ele poderia enxergar quando o homem do motosserra chegasse para fazer a derrubada.
De vez em quando ele tomava um gole de xarope de mel de Arapuá com Romã e Sucupira que a sua mãe tinha feito para curar um difruço que ele estava, e ainda andava com um pedaço de pano amarrado em uma das pernas para segurar as folhas de capeba, mastruz e copaíba, que ficavam presas sobre uma pereba que havia saído em sua canela.
De repente ele avistou o homem chegar, desceu do Mutá, passou por baixo de uma grande sapoema e novamente se escondeu atrás das três jarinas que haviam ali por perto. Ele não era um menino de malinar em nada de ninguém, mas uma hora, ele aproveitou que o homem saiu para fazer as suas necessidades fisiológicas no pau-da-gata e foi ver de perto o bicho da língua de ferro. Ele pegou a sua faca de seringa, riscou o que viu numa tábua de Umburana, voltou ligeiro, desceu da ribanceira, impeliu a Ubá no meio da Canarana e retornou para casa.
Agora em casa e sentado sob a sombra de uma fascinante Paricá, em menos de uma semana ele conseguiu confeccionar de forma reciclável o seu estimado bicho da língua de ferro. Feliz com o feito, dirigiu-se até o pai e mostrou o seu mais novo brinquedo ribeirinho.
O pai observou atentamente o brinquedo e respondeu ao filho:
– Ficou bonito, mas estou achando um pouco diferente.
E o filho sabiamente respondeu ao pai:
– Ele é diferente mesmo pai. Não ronca e não faz mal a natureza.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Percival Farquhar o maior empresário do Brasil: Territórios, Redes e Conflitos na Implantação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM-RO) e na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG-PR/SC), da Universidade Estadual de Londrina e do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito, também da Universidade Estadual de Londrina.