GEPCULTURA – IGARAPÉ PRETO – PROVÍNCIA FEDERICO ROMÁN – BOLÍVIA. 2010.
Conceituar a solidão como processo de distanciamento ou isolamento social, talvez poderíamos estar abdicando do ato de pensar. A solidão não é aversa à reflexão, é uma necessidade humana de internalizar no seu ser todas as suas problematizações, e estas, por sua vez, irão provocar nos atores sociais um ato de pensar dinâmico e instigante, relevantemente capaz de eliminar uma situação vigente malévola e proporcionar em vez do infortúnio, o advento natural da felicidade.
A solidão da casa do Igarapé Preto não se absorve na terra, não é banida pela natureza, não é degredada pelo espaço e nem é um calabouço da vida. Ela condena o calvário, ceifa o desprezo e a arrogância e sepulta o sentimento de tristeza e frustração.
A solidão não exila a liberdade, não é tirana, não é despótica, não é malogro dos modos de vida e não é submissa ou insolente. Mas a solidão depende do ser que a internalizou, depende do ser que a apreendeu e depende do ser que dela se apropriou, para dela poder construir os seus pensamentos.
Gaston Bachelard nos diz que todos os espaços das solidões passadas, os espaços que sofremos a solidão, comprometemos a solidão, são indeléveis em nós e é precisamente o ser que não deseja apaga-los. Para o mesmo autor os espaços da solidão são constitutivos e ao mesmo tempo, são experiências reconfortantes.
A solidão está alojada na casa, e ambas estão alojadas ao ser. Há um profundo entrelaçamento de todo este imaginário privilegiado com o sentimento ontológico de perenidade da alma.
Se para Bachelard a casa é o nosso canto do mundo, para Eric Dardel, a inserção do homem no mundo é um lugar de um combate pela vida, a manifestação do seu ser com os outros e a base de seu ser social, assim como para o escritor Otto Bollnow, a casa segue sendo, num significado profundo, um território inviolável da paz e desse modo é nitidamente separada do mundo inquieto lá fora.
O Igarapé Preto com suas águas escuras é um peculiar e estetizante afluente boliviano das águas amareladas do rio Abunã, e a casa do Igarapé Preto é um singular e esplendor mundo cósmico da Província Federico Román.
Na complacência da água, divinamente entranhada à paisagem da casa, o ribeirinho amazônico viaja em seus devaneios estetizantes. A água no deslumbramento de sua exuberância cósmica, habita a alma humana e a faz sentir-se além da transcendental pureza espiritual. Gaston Bachelard nos diz que sonhar perto de um rio consagra a imaginação à água, e que não pode sentar perto de um riacho sem cair num devaneio profundo.
As águas do Igarapé Preto são águas imaginárias da memória coletiva da contemplação familiar. As águas inefáveis são também águas míticas e por isso ela tem uma mãe. A Mãe-d’água é uma enigmática encantaria da alma ribeirinha, dessa forma, Bachelard insiste em dizer que o verdadeiro olho da terra é a água, e por sua vez, Eric Dardel nos diz, que por sua mobilidade, pelo salto soletrado da corrente ou pelo movimento ritmado das vagas, as águas exercem sobre uma atração que chega à fascinação.
A água, a casa, os utensílios e a floresta, vão desta forma constituindo o sentimento de pertencimento do lugar. Martin Heidegger ao narrar sobre o ser-no-mundo, nos instiga a entender que todo esse processo de apropriação e apreensão dos utensílios, são processos naturais que no espaço e tempo vão cotidianamente preenchendo os valores axiológicos do ser, e assim, na espacialidade e temporalidade, o espaço vai transformando-se no aconchego do lugar.
GEPCULTURA – A CASA DO IGARAPÉ PRETO – PROVÍNCIA FEDERICO ROMÁN – BOLÍVIA – 2010.
Para Eric Dardel, a paisagem não é, em sua essência, feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, é uma manifestação do ser com os outros e a base de seu ser social. A casa do Igarapé Preto é o lugar da família seringueira, é o lugar que adentrou na sua alma, que constituiu a sua identidade cultural, que a fez acreditar na essência da cosmogonialidade, e que fez desta singular família, a sua própria presentificação: a representação autêntica do lugar.
A alma apropria-se do lugar e o lugar é alojado pela alma, e ambos constituem o ontológico sentimento do ato de pertencer. Para a saudosa geógrafa Lívia de Oliveira, lugar e tempo se nos apresentam intimamente ligados, para a autora, a concepção atual de lugar é de tempo em espaço, ou seja, lugar é tempo lugarizado.
GEPCULTURA – TAPIRI DE EQUIPAMENTOS E FERRAMENTAS – IGARAPÉ PRETO – PROVÍNCIA FEDERICO ROMÁN – BOLÍVIA – 2010.
Para o escritor Edward Relph, o núcleo de significado de lugar se estende, pensa ele, em suas ligações inextricáveis com o ser e com a nossa própria existência. Para Lígia Saramago, o que imediatamente se mostra como fundamental é a importância decisiva atribuída à relação entre ser e estar em seu lugar, uma relação de autêntica e essencial pertencimento do lugar.
Para Eduardo Marandola, é pelo lugar que nós identificamos, ou nos lembramos, constituindo-se assim, a base de nossa experiência no mundo. Para Werther Holzer, na medida em que o homem se aproxima desse espaço, ele se torna mundo, um exemplo de espaço primitivo que uma vez apropriado pelo homem, se torna lugar.
GEPCULTURA – ENGENHOCA – IGARAPÉ PRETO – PROVÍNCIA FEDERICO ROMÁN – BOLÍVIA – 2010.
Para Eric Dardel, podemos mudar de lugar, nos desalojarmos, mas ainda é a procura de um lugar. Para YI-Fu Tuan, o espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado.
O escritor amazonense Paes Loureiro, nos diz que a natureza possui uma dimensão espiritual, povoada de mitos, recobrindo-a de superstições, destacando-lhe uma emotividade sensível, tornando – a lugar do ser, materializando nela sua criatividade e ultrapassando sua contingência na medida em que faz dela um lugar de transcendência.
Para o renomado escritor e geógrafo rondoniense, Josué da Costa Silva, líder e coordenador geral do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – GEPCULTURA, são os códigos éticos, morais e culturais que constituem a formação do lugar.
A casa do Igarapé Preto, continua sem embuste, sem empáfia e sem arrogância. A casa do Igarapé Preto é um lugar encantatório, exuberante e cheio de vivacidade. Um lugar imaculado, imensurável, inebriante e de uma paisagem, seja natural ou cultural, divinamente inefável.
A caudalosa Amazônia ribeirinha é complacente com a vida, é cosmopolita com a natureza, é dadivosa com as encantarias, é impávida com o cotidiano, é maviosa com o lugar e verdadeiramente benevolente com a vivacidade divinal de suas almas.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Percival Farquhar o maior empresário do Brasil: Territórios, Redes e Conflitos na Implantação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM-RO) e na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG-PR/SC), da Universidade Estadual de Londrina e do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito, também da Universidade Estadual de Londrina.