As águas amazônicas percorrem silenciosamente cada veia peculiar do vivificante ser ribeirinho. Nas veias abertas de suas coletividades ancestrais e seculares, as águas navegam ininterruptas e transbordam de forma imponente na cotidianidade dos tradicionais modos de vida de homens, mulheres e crianças que sempre viveram originalmente grudadas em cada espaço de ação do seu simbólico e inebriante mundo florestal.
GEPCULTURA – RIO MAMU – PANDO – BOLÍVIA – 2018.
As águas não descansam, nem dormem, elas são o descanso e o sono. Sem as águas não há repouso para a fauna e para a flora. Há vidas que moram e que brincam nas águas, e há vidas que são embebecidas pela sua maternidade benevolente para que possam sobreviver noutras moradas de mundos reais e surreais.
GEPCULTURA – RIO MAMU – PANDO – BOLÍVIA – 2018.
A água fez com que o rio divinizante entranhasse no sentimento de perenidade da alma ribeirinha numa celebração ontológica e devaneante da natureza em estado transcendental de deslumbramento e exaltação cosmogônica da vida.
Mas diante do surgimento de modelos de políticas governamentais para o desenvolvimento da Pan – Amazônia que insistem de maneira ardilosa em desterritorializar e asfixiar coletividades originárias e tradicionais do seu mais autêntico lugar, de maneira ignóbil e ludibriante, provocar uma clarividente coercitividade institucional que culmina numa hostilizante derrocada humana em desfavor dos setores mais carentes e fragilizados da sociedade.
GEPCULTURA – RIO MAMU – PANDO – BOLÍVIA – 2018.
Foram justamente modelos estereotipados como estes que macularam a transparência e a inviolabilidade dos sagrados direitos humanos internacionais de nações latino – americanas quem em vez de instalar a paz e a diplomacia fronteiriça, optaram pela insidiosa decisão em nome de governos binacionais em retirar de seus lugares de origem, históricas famílias tradicionais dos rios Mamu e Abunã e condená-las a uma extrema humilhação de uma desonra pública tacanha e xenófoba.
Depois de anos de afugentamento e escabrosidade, os ribeirinhos expulsos de seus lugares tradicionais por um malévolo conciliábulo, foram tenebrosamente condenados ao inditoso abandono e tratados de forma reacionária e segregacionista por um despotismo nefário e odioso.
GEPCULTURA – RIO MAMU – PANDO – BOLÍVIA – 2018.
As famílias ribeirinhas esperaram por um pedaço de terra no Brasil por um período de quase dez anos. Condenadas ao desengano, muitas delas não resistiram e partiram para outra dimensão da vida. Outras esmaeceram e se tornaram inaptas ao trabalho, vegetando em cima de um colchão e alimentadas pela misericórdia da fé em Deus. Parte delas foram assentadas no Projeto de Assentamento Jequitibá em Candeias do Jamari, mas não resistiram ao abandono e desistiram da terra, por falta de apoio e principalmente porque encontraram outras famílias assentadas que se intitulavam proprietárias de parte das terras destinadas aos ribeirinhos.
As demais famílias que restaram foram assentadas no Projeto de Assentamento Wálter Arce no Município de Bujari no Estado do Acre e desde o ano de 2015 resistem como podem para sobreviver.
Os ribeirinhos estão se adequando a novos modos de vida. O rio e a mata não são mais o lugar dos seringueiros brasivianos do rio Mamu. Eles estão construindo e reconstruindo um novo espaço de ação a procura de um novo lugar que lhes ofereçam mais paz e dignidade.
GEPCULTURA – ASSENTAMENTO WÁLTER ARCE – BUJARI – ACRE.
Relutantes na relação com a terra, os ribeirinhos que foram desterrados dos seus lugares tradicionais, carregaram apenas o imaginário inebriante da floresta no autêntico entranhamento do ser como consequência de uma reterritorialização que marcou profundamente as suas vidas.
Arrancaram-lhes o lugar e a cotidianidade dos seus modos de vida, dilaceraram as suas relações estetizantes dos momentos de exaltação com a natureza e mesmo diante da aterrorizante tentativa de desalojarem as suas almas divinizantes, o encantatório mundo simbólico e suas singulares encantarias florestais, continuam alimentando o entranhamento do ser e um fecundo imaginário ancestral, mesmo que ontologicamente ferido.
GEPCULTURA – ASSENTAMENTO WÁLTER ARCE – BUJARI – ACRE.
No espaço e tempo o metamorfoseamento talvez anunciará entre a essência e o invólucro de novas gerações oriundas da alma ribeirinha, o surgimento, quem sabe, de uma identidade camponesa amazônica. Sem água, o seringueiro brasiviano do rio mamu teve que cavar um poço, mesmo sabendo que este rio ainda vive dentro deles.
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Percival Farquhar o maior empresário do Brasil: Territórios, Redes e Conflitos na Implantação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM-RO) e na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG-PR/SC), da Universidade Estadual de Londrina e do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito, também da Universidade Estadual de Londrina.