Na primeira década do ano 2000, logo após o advento do governo boliviano Evista, aconteceu a mais repugnante e xenófoba ação de atrocidade humana, cometida contra as populações tradicionais do rio Mamu no Departamento de Pando.
A expulsão das famílias ribeirinhas brasileiras ou brasivianas do rio Mamu por grupos milicianos fortemente armados que se intitulavam zafreros ou campesinos, foi na verdade uma ardilosa insídia institucional do país vizinho que argumentava na época, a ilegalidade de que nenhuma família estrangeira poderia residir na franja de 50 km de sua fronteira, conforme reza a constituição boliviana.
As ações foram comandadas por grupos paramilitares bolivianos sob o efeito de uma cortina de silêncio do próprio Instituto Nacional de Reforma Agrária – INRA, enquanto o principal líder nacionalista que se dizia defensor das populações originárias e das classes subalternas daquele país, silenciou-se diante das truculências cometidas em desfavor das populações tradicionais seringueiras do Noroeste pandino boliviano, na fronteira com a Região da Ponta do Abunã no Estado de Rondônia.
Essas populações tradicionais são consideradas brasivianas porque nasceram na Bolívia, mas pelo fato dessas famílias terem sido registradas no Brasil, um registro de nascimento prevaleceu mais do que a história social e cultural dos remanescentes dos dois grandes ciclos da borracha na Amazônia Sul Ocidental brasileiro – boliviana. Muitas famílias tinham dupla nacionalidade, mas foram expulsas, e muitas mulheres bolivianas por serem casadas com os brasivianos, também não foram poupadas e tiveram o mesmo destino que as demais: refugiar-se no Brasil à procura dos seus direitos humanos internacionais.
Anteriormente nesta coluna escrevi sobre “A flor do Mamu”, onde narrei sobre as famílias que ficaram reféns na comunidade Puerto Bolivar durante um período de mais de três dias, e quando enfim, os milicianos resolveram liberar uma das famílias que estava com uma criança ardendo de febre e sofrendo de malária, o batelão tomou rumo ao Brasil, mas infelizmente a flor do Mamu não resistiu.
Na mesma situação uma mulher tomou uma decisão diferente e resolveu agir em busca da liberdade e denunciar no Brasil a situação beligerante. A guerreira brasiviana do rio Mamu também estava refém na comunidade Puerto Bolívar e temendo acontecer o pior, principalmente com a sua filha que possuía apenas sete meses de idade, ela decidiu fugir do cárcere a que estava submetida e escondeu-se na floresta, almejando uma forma de chegar até Extrema de Rondônia.
As embarcações estavam todas atracadas nas proximidades da Associação de castanheiros do Município de Santos Mercado, e durante a noite apenas as luzes dos candeeiros iluminavam os batelões onde as famílias brasivianas estavam alojadas. No escuro de uma madrugada fria, a ribeirinha resolve encarar os perigos da floresta e adentra sem medo num varadouro com a sua filha grudada nos braços, procurando um caminho que a levasse até o Brasil.
Ela deixa a comunidade de Puerto Bolívar que mais parecia um estado de belicosidade ou um território de degredo que privava os brasivianos de sua costumeira liberdade, e nos confins de uma fronteira em “pé de guerra” consegue afastar-se silenciosamente da conglomeração miliciana.
A obstinada mulher guerreira ao tempo em que estava relegada e banida pela crueldade humana sentia-se seguramente protegida pelo espírito da floresta, pois enquanto percorria a mata noturna não havia escárnio nem embrutecimento de ninguém, apenas sentia uma concatenação de alteridade com a natureza.
Por entre árvores e rios não havia empáfia. A guerreira brasiviana e a filha estavam entrelaçadas de corpo e alma com a divindade cosmogônica que as iluminava e em nenhum momento esmaeceram ou extenuaram suas forças durante a longa caminhada.
Pertinaz e relutante na fuga, o operoso trajeto florestal rendeu-se à inteligência incomum da guerreira que herdou do avô, soldado da borracha e velho mateiro, a aguçada capacidade de nunca ter se perdido na mata. Não houve nenhum precipício que lhe tirasse o portento, nem nenhuma retaliação natural no caminho que ferisse a relevância de seus passos e a fizesse perder –se ao rumo de seu ontológico mapa mental brasiviano.
A mulher guerreira libertou-se do opróbrio, da infâmia e da injúria. Jamais deixaria que o seu rebento entrelaçado aos seus braços se submetesse ao nefasto mundo da dor da exclusão. A natureza ensina aos homens como lidar com a indolência, típico daqueles que se tornam obcecados e desvairados pela sagaz perseguição ao insaciável ato de “ter”. A brasiviana guerreira não se curvou nem se rendeu ao esdrúxulo e fútil incauto do odioso, ato crônico e repulsivo da apatia humana.
A ribeirinha mulher lutou incansavelmente contra uma afronta infame, diante de um falso patriotismo fronteiriço. A guerreira brasiviana não se curvou a estagnação fluvial de Puerto Bolívar, a guerreira mulher clamou aos espíritos da floresta a mais respeitosa proteção naquela mais árdua jornada.
A mátria florestal pandina boliviana, mais uma vez cuidou de duas filhas. Coube a natureza inefável durante quase uma semana, outorgar às suas filhas, a sua honraria e hombridade para que a natureza inebriante e encantadora fizesse com que a guerreira brasiviana e sua filha, finalmente chegassem em paz e com saúde ao Porto Extrema do rio Abunã no Brasil.
Exaurida, ela procurou ajuda ao Projeto Ética e Cidadania e denunciou o descalabro acontecido ao Consulado Brasileiro de Cobija. Com resistência e empoderamento, a mulher seringueira enfrentou a estúrdia e à execração humana, sem jamais se render ao labéu da desonra. Viva a guerreira brasiviana!
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Percival Farquhar o maior empresário do Brasil: Territórios, Redes e Conflitos na Implantação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM-RO) e na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG-PR/SC), da Universidade Estadual de Londrina e do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito, também da Universidade Estadual de Londrina.