Naquele 31 de outubro de 1517, quando Lutero iniciou a Reforma, a esperança de um cristianismo mais próximo das Escrituras surgiu como uma frágil vela em meio a fortes ventos de corrupção e maldade humanas. Mais de 500 anos depois, este facho de luz está quase apagado. Se cinco séculos atrás o problema da igreja era a coleta de dinheiro como forma de garantia contra o mal e a conquista de bênçãos e salvação, hoje se transformou num câncer devastador no catolicismo, nas igrejas evangélicas e em outras expressões religiosas. "Greenleaf" (Netflix) ilustra o que Lutero combateu: dinheiro e poder não combinam com a fé cristã. O poder anula a fé e a riqueza extingue a ética. Daí Rui Barbosa profetizar que "de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto" – e eu complemento: vergonha de ser cristão.
Os noticiários não param. Assédios. Fraudes. Roubos. Tráfico de influência política. Preconceitos. Homofobia. Discriminação da mulher. Estupros. Perseguição aos diferentes e até venda de feijões para a cura da pandemia – talvez numa alusão infeliz ao conto "João e o Pé de Feijão", de Tabart, em 1807, onde o personagem troca uma vaca por feijões que o levariam ao céu… E até nesse exemplo encontramos a barganha de coisas terrenas pela entrada no paraíso. Ora, se o povo vê as famosas lideranças religiosas envolvidas nesse lamaçal; se assiste a esses líderes sorrindo abraçados a políticos que já venderam a alma se sabe lá a quem para estarem no poder; se recebe desses sacerdotes "em nome de Deus" o ensinamento de como vencer na vida por meio do câmbio entre vacas e feijões mágicos – resta às multidões que lotam os templos enlamearem mais as Santas Palavras, anestesiadas pela perigosa premissa de que os fins justificam os meios, como disse o poeta Ovídio na Roma antes de Cristo.
Mas, não é somente uma questão da mídia. Olhe a seu redor e veja a proliferação de templos, igrejas e denominações cristãs que, se não fosse trágico, mereceriam "Oscar" pela criatividade em como enganar as pessoas com efeitos especiais de uma Teologia ao gosto do freguês. Atualmente, é comum as igrejas não lutarem mais para libertar o ser humano das trevas, mas sim entre elas, para multiplicarem seus adeptos, a quem consideram clientes de um negócio extremamente lucrativo. Se os cofres milionários de algumas igrejas fossem esvaziados, haveria um grande êxodo de líderes religiosos procurando o que fazer na vida, já que não se enquadram na categoria de trabalhadores como milhões de brasileiros e brasileiras que labutam pelo sustento honesto da família. Imagine a cena: famosos "padres", "pastores", "profetas", "bispos", "apóstolos", "patriarcas" (e faço questão de usar as aspas em respeito ao significado desses títulos) – imagine essas pessoas como um peixe fora do aquário de suas milionárias mansões… Talvez isso seja possível debaixo das garras do leão da Receita e da Federal.
31 de outubro não é dia de bruxaria porque esses líderes cristãos já estão abarrotados de doces, fazem mil travessuras o tempo todo pelo poder e riqueza, e usam as mesmas máscaras de uma falsa e ridícula santidade. Rapidamente, se o povo quisesse recordaria que eles sempre estiveram ao lado dos políticos em cada eleição – independentemente do partido – promovendo a terrível mistura entre política partidária e religião, num país que se diz laico, mas com uma laicidade mutante que beneficia a quem estiver ao lado do poder da ocasião. Se a cada eleição o "gigante pela própria natureza" mudar o rumo de acordo com a religiosidade dos mandatários, voltaremos à época de Lutero quando cidades e nações alternavam a religião em obediência ao soberano. E a frágil vela da fé é atingida por essas ventanias de governos desvairados, enquanto o povo padece todas as vezes quando os interesses mesquinhos de governos se sobrepõem aos dignos destinos do Estado.
Desculpe, mas é imensa a incoerência de pessoas que se dizem católicas ou evangélicas fazerem deste dia a celebração da bruxaria. Quando pensamos nas crianças brasileiras prejudicadas com os efeitos da pandemia na saúde, família e educação; quando lembramos os milhões de trabalhadores empobrecidos nos últimos meses não somente com a Covid-19, mas com a constante desvalorização do real; quando os ventos dilaceram o bem-estar social outorgado na Constituição e diminuem todo dia a comida na minha e na sua mesa; quando as ilusões coletivas mais uma vez são evidenciadas nas magias das campanhas eleitorais – infelizmente, não é tempo de festejar. Não tem graça. E uma saída desse caos em nossa pátria amada começa na reforma pessoal pela ética cristã, pelo respeito interpessoal, pela valorização da cidadania. Assim, não deixaremos apagar a luz da Graça de Deus, e não teremos mais vergonha da fé.