Na madrugada da dadivosa mátria florestal, o seringueiro deixa o inebriante tapiri e no encantatório de sua exuberante colocação, com a poronga encaixada na cabeça, sai silenciosamente iluminando a estrada de seringa sob o peculiar luzeiro da lamparina.
AQUI TEM GENTE – HISTÓRIA SOCIAL DA BORRACHA: SERINGUEIROS DO ACRE – CARLOS CARVALHO, 2005
É tempo de corte e de colha. É tempo de sangrar a seringueira, embutir a tigelinha, colher o precioso látex para a confecção da estetizante péla de borracha e sentir o autêntico cheiro da fumaça do buião.
Para o escritor acreano Raimundo Ferreira de Souza, o buião é uma “armação redonda, erguida em barro na vertical, com a base mais larga e situada sobre uma escavação no chão, onde se acende o fogo alimentado com lascas de madeira, que produz fumaça por um orifício situado na parte superior”.
O buião geralmente fica instalado num pequeno tapiri ou no defumador propriamente dito, o local onde o seringueiro realiza em sua cotidianidade o moroso processo de coagulação do látex, utilizando uma bacia através de uma movimentação giratória até que a borracha adquira o formato de uma péla, definida por Pedro Ranzi como uma “bola de borracha, do fabrico do seringueiro, que depois de defumado o leite de seringa, dá uma péla. Seu peso varia conforme a vontade do fabrico”.
Para o escritor Leandro Tocantins “seringa, na linguagem amazônica, era uma bomba sem êmbolo, em forma de pera oca, feita de borracha, com orifício na extremidade, no qual se adaptava uma cânula. Invenção dos índios, que tinham o hábito singular de utilizá-la, como limpeza de campo, antecedendo aos jantares de gala, operação a que não se eximiam os convidados de repasto”.
AQUI TEM GENTE – HISTÓRIA SOCIAL DA BORRACHA: SERINGUEIROS DO ACRE – CARLOS CARVALHO, 2005
Na contemplação do fabrico da péla há um transcendental entranhamento que de forma natural envolve a natureza, o lugar, o trabalho e a família. Nesta singular memória coletiva o interior do tapiri promove um entrelaçamento que se aloja ao ser de cada membro familiar como uma substância ontológica que vai residir no sentimento e no pertencimento de um simbólico e divinizante imaginário que se estenderá na magnitude de várias gerações.
Gerações que também presenciaram o declínio da pujança econômica do primeiro surto da borracha amazônica, e que teve a sua gênese no transporte de sementes da seringueira (Hevea brasiliensis), árvore nativa da Amazônia, levadas pela falácia e fidúcia da biopirataria do botânico inglês Henry Wickham para a Inglaterra e posteriormente plantadas e cultivadas com sucesso no continente asiático.
Conforme nos explica Felipe Tâmega Fernandes: “A história do cultivo da Hevea na Ásia começou em 1876, quando Henry Wickham plantou em Kew Gardens, Londres, algo como 70 mil sementes coletadas por ele na Região do Pará, no Brasil. Dessas 70 mil sementes, 2.600 germinaram e foram transplantadas para o Ceilão para serem distribuídas para regiões mais úmidas e quentes. A organização da produção provou ser decisiva. Em 1877, as primeiras árvores foram plantadas em Cingapura e na Federação Malaia (Malásia), e durante as décadas de 1890 e 1900 essas plantações tomaram uma tendência explosiva, expulsando do mercado após 1910 todos os produtores de borracha nativa, incluindo o maior produtor de borracha crua de então – o Brasil”.
Para o historiador Carlos Alberto Alves de Souza “Em 1905, quando a produção brasileira de borracha dos ingleses tinha uma produção de apenas 145 toneladas. Mas, surpreendentemente, em 1910, a produção inglesa já aparecia nos mercados com um total de 8.200 toneladas de borracha. Em 1913 a borracha inglesa, produzida na Malásia, alcançou um número de quase 48.000 toneladas, superando a produção brasileira que vinha da Amazônia, que só produziu 39.560 toneladas”.
Com o término da construção da Estrada de Ferro Madeira – Mamoré (1912), também surgiu o declínio da produção e valorização da borracha natural na Amazônia e somente a partir do advento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) é que vai surgir uma nova página que dará prosseguimento a essa história: o segundo surto da borracha na Amazônia ou a História da Batalha da Borracha (1942 – 1945).
Marquelino Santana é doutor em geografia, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Percival Farquhar o maior empresário do Brasil: Territórios, Redes e Conflitos na Implantação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM-RO) e na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG-PR/SC), da Universidade Estadual de Londrina e do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito, também da Universidade Estadual de Londrina.