Os seus sonhos brilhavam na mente e uma estrela no firmamento anunciava que o menino da floresta alçaria voo com um lápis e um caderno na mão. Um pedaço de pão ensopado no açaí era o suficiente para que João alimentasse os seus sonhos todos os dias, a escola nacional de florestas instigava o seu peito, a mata era o seu ser e a universidade era apenas mais um degrau de interação entre ele e o seu imaculado lugar.
De tudo João sabia. Ele conhecia os varadouros e as suas estradas de seringa, sabia sangrar a seringueira, embutir a tigelinha, comia uma farofa de carne de caça, tomava uma jacuba, fazia a colha do látex e depois tirava cavaco para acender o buião e confeccionar a famosa péla de borracha.
Enquanto João escutava no rádio falar da Escola Nacional de Florestas na década de 1960, ele continuava quebrando castanha, defumando o látex e amolando a raspadeira e a sua faca de seringa para a lida cotidiana do dia vindouro.
Mas um certo dia João acordou apavorado: um fogo cruel e assassino devorava a sua casa e os gritos da família em desespero ecoavam por entre a mata virgem impiedosamente transformada em cinzas.
Enquanto João sonhava preparando a sua história, outra história estava sendo preparada pelo seu país. Ele queria entender o que estava acontecendo pois jamais fizera mal à floresta que tanto amava. A família resistia bravamente e a bandeira do bem viver continuava hasteada em suas vidas e no seu lugar, mas o tal desenvolvimento desalmado não se preocupava com a imaculada mátria florestal da terra.
Mas João continuava sonhando que aquela tragédia passaria e que o bem viver retornaria definitivamente a fazer parte da história do seu lugar. Infelizmente o bem viver não retornou e João teve que acordar para poder enxergar as seculares árvores da vida derramando seu sangue e sendo sepultadas pelas lágrimas fúnebres da mãe natureza.
João não se entregou e resistiu bravamente ao lado da família seringueira. Outras famílias se uniram e partiram para impedir que os seus lugares fossem transformados no império das cinzas: estava anunciado o “empate”. João continuava sonhando e os seus sonhos foram se ampliando ou talvez se apagando. João parou de sonhar em cursar a Escola Nacional de Florestas, ele agora estava sonhando em defender o seu lugar.
Certo dia o pai e a mãe o chamaram para conversar, lhe deram um saco de encauchado com algumas mudas de roupas e o pediram para seguir o varadouro até a casa do seu padrinho e ficasse lá por uns dias até as coisas se acalmarem. E assim João fez. Levou uma farofa bem temperada que a sua mãe preparou e caminhou o dia inteiro até chegar à casa do seu padrinho, na certeza de que alguns dias depois o seu pai iria buscá-lo. Enquanto isso João continuava sonhando com o bem viver.
Se passaram dois meses. O pai de João não retornou para buscá-lo e jamais retornaria. Os seus padrinhos tiveram que lhe dar a triste notícia: os seus pais foram assassinados por jagunços fortemente armados. O mundo de João desabou. Tempos depois João teve que assistir o próprio padrinho também ser assassinado. Ele e a sua madrinha conseguiram escapar e foram morar na cidade. Um mês depois a sua madrinha adoeceu de malária e também partiu.
O tempo passou e João parou de sonhar. João não conseguiu escrever a história que ele tanto sonhou. O seu país deu outra história a João: A história de João ninguém.
Marquelino Santana é doutor em geografia, líder do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir e pesquisador do grupo de pesquisa Percival Farquhar o maior empresário do Brasil: Territórios, Redes e Conflitos na Implantação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM-RO) e na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (EFSPRG-PR/SC), da Universidade Estadual de Londrina e do grupo de pesquisa Geografia Política, Território, Poder e Conflito, também da Universidade Estadual de Londrina.