Um velho Batelão descansa às margens do rio Abunã. Se olharmos com a alma para a sua história poderemos enxergar muito mais do que pedaços de madeira fincados como cruzes no chão ribeirinho. Foi nele que a mulher ribeirinha deu à luz sob o olhar atento da parteira.
O grito do filho da floresta e das águas ecoa ao vento, levando a sua voz ao longe e anunciando a chegada daquele que mais tarde ficará conhecido como o libertador da exploração e da dominação que o barracão exercia sobre o valente tapiri, ou sobre a devastação dos seringais nativos amazônicos.
O Batelão resiste no espaço e tempo, lugar do aconchego e da segurança. Lugar da refeição sagrada, temperada com o amor da mulher seringueira. No seu navegar não há preconceitos ou estereótipos, e sempre cabe mais um.
Na casa Batelão as tarefas são compartilhadas. As relações de gênero grudadas ao seu envolto são legítimos sinais de respeito às diferentes diferenças. Rio e floresta constituem um só corpo, homogêneo e heterogêneo ao mesmo tempo. Um imaculado corpo que nunca negou o pão aos habitantes do Batelão. Talvez por isso, os filhos da floresta, saibam como ninguém, da necessidade urgente de impedirem que a mãe terra seja cotidianamente despida de suas originárias vestes verdes.
O Batelão oferece a liberdade e aceita seus tradicionais navegantes vestirem uma roupa bem “engomada” e viajarem até os pequenos núcleos urbanos para venderem seus produtos, e fazerem algumas compras para suprir as necessidades do lar. Ancorado, o Batelão aguarda pacientemente seus integrantes retornarem.
Durante a safra da castanha o Batelão não descansa e está sempre carregado. É um dinheiro extra do ribeirinho para ajudar no orçamento familiar. A alegria da família é visível, pois nesta viagem está garantido uma muda de roupa nova, um brinquedo e até um aperitivo para transparecer as ideias.
Se a viagem for longa e o cansaço bater, nada melhor do que uma rede macia armada para aliviar as dores, alimentar o sono e acordar ativo antes do sol raiar. Amanhã será outro dia, a liberdade estará renovada e o bem viver estará preparado para receber os poemas dos modos de vida dos seringais.
E assim, longe das estigmatizações do mundo globalizado e do regime tácito da sociedade envolvente, nós vamos remando a vida sem provocar nenhuma mutilação identitária, diferente do olhar desenvolvimentista estatal que prefere o mais brutal etnocídio dos povos originários e tradicionais da floresta amazônica. Um modelo de desenvolvimento violentador do homem, da alma e da cultura, que insiste em hostilizar o Batelão nosso de cada dia.
Marquelino Santana é doutor em geografia e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir.