O povo Kaxarari, de família linguística Pano, habita um território de 145.889,849 ha, localizado nos Munícipios de Lábrea – AM e Porto Velho – RO e com uma população estimada de 445 habitantes (Siasi, Sesai/2014). É neste inefável território que vive a liderança José Cézar Kaxarari ou Mayá, na sua língua original. Mayá, juntamente com o irmão Alberto Cézar, fundaram a aldeia Kawapu, onde vivem até hoje. No seu vasto imaginário amazônico, Mayá demonstra possuir um valioso apreço pelo seu Mapupahu (pote de barro). Por incrível que pareça, eles dialogam entre si, e neste entremeio, suas confidências brotam e não cessam.
Figura – Santana, FM. José Cézar Kaxarari (Yunpá) segurando o Mapupahu. Aldeia Kawapu/Extrema/Rondônia. Julho. 2018
Numa amizade construída ao longo de 30 anos com Mayá, os registros escritos, logo de início, tornaram-se irrelevantes, preferi alojar suas histórias no meu ser, um pertencimento natural, sem pausas, sem ajustes e sem correções. Mapupahu não fala de suas histórias, nem é preciso, ele é a própria história. Ou melhor, às vezes ele fala, mas apenas nos sonhos de quem tem apreço por ele e com o despacho de quem o criou. Nesses devaneios poetizantes, muitas histórias não batem com o que está nos livros. É preciso analisar com cuidado o que ele diz. Ou analisar com cuidado o que os outros disseram. Numa outra oportunidade falarei sobre “Os sonhos do Mapupahu”.
Pois bem, Mayá nos diz que o seu povo levava sempre o Mapupahu durante as viagens que faziam: – O meu povo antigamente saia cedo da maloca para ir buscar mel do outro lado do rio Abunã. A canoa naquele tempo era feita num pau só, um tronco de madeira bem grande cavado dentro. O Mapupahu ia cheio de água e quando os parentes voltavam, traziam o Mapupahu cheio de mel. Por isso que o Abunã na nossa língua é água doce (Bunawaka). Buna é mel, doce. Waka é água. O verdadeiro nome desse rio é Bunawaka, e não Abunã. Quem botou o nome de Abunã foi o branco. – Disse Mayá.
Imaginemos agora, quantos anos aproximadamente possui o seu velho Mapupahu: Quase três séculos de história. Uma relíquia cultural preservada que preenche os sentimentos de Mayá e que não desgruda do seu pertencimento. Heidegger nos diz que “Uma coisa é fazer um relatório narrativo sobre os entes, outra coisa é apreender o ente em seu ser”. O imaginário de Mayá alça voo quando ele fala das histórias do seu povo, ele passa a mão carinhosamente no Mapupahu e diz: – Ele me faz lembrar muitas coisas. Parece que eu estou vendo a minha mãe segurando nele e me dando um chá para beber. – Ele respira fundo. Nesse momento os raios do sol se cruzam com o olhar de Mayá, os reflexos brilham no seu rosto e as cores se misturam com uma lágrima que cai.
Saber ouvir os sentimentos de alguém é saber respeitar. Escrever esses sentimentos, além de respeitar, é saber imbricar-se nele próprio.
Marquelino Santana é doutor em geografia e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas, Modos de Vida e Culturas Amazônicas – Gepcultura/Unir.